quinta-feira, 13 de junho de 2019




Começamos aqui nossos relatos pessoais como contadoras de histórias e mediadoras de leitura no Projeto Girolescas Narrativas, financiado pelo Profice e realizado pelas integrantes da Cia Girolê, Cleo Cavalcantty, Moira Albuquerque e Caroline Casagrande, de quem sai o primeiro relato:

Era manhã, e o dia se chamava escola (09/05/19)


No começo do mês de maio deste ano estivemos as três contadoras na Escola Estadual Professora Hilda Faria no município de Rio Branco do Sul. O deslocamento de Curitiba até lá já nos proporciona um novo horizonte, com uma natureza mais espessa formada por morros, pequenos riachos e uma comunidade mais rural. Assim como a paisagem da cidade, a escola também nos mostra um universo diferente do qual temos mais contato. O público da escola em questão reflete uma realidade presente em muitas outras escolas públicas da região metropolitana de Curitiba, grande parte dos alunos frequenta a escola para poder ter uma refeição completa e muitas vezes se encontra em condição de vulnerabilidade social.


Diante deste quadro, o lugar da literatura na vida destes adolescentes não poderia estar em melhor posição pois nem sequer encontra-se inserida na grade curricular. Como criar um vínculo afetivo com estes alunos e fazê-los interessar-se pela leitura, pelo livro em tão pouco tempo? Constatando que a grande maioria dos alunos afirma não gostar de ler. A resposta não é simples e procurá-la nos causou certa angústia, uma vez que o adolescente não é o nosso público alvo e essa configuração de trabalho é nova pra todas nós. Como é trabalhar um texto de literatura infantil com este público sem que eles se sintam tratados como crianças? Como abordar a profundidade de um texto e mediar uma discussão sobre os temas família, violência, amizade em sala de aula?  


Pra começar, tivemos que nos despojar de fórmulas prontas para abrir-nos a novas possibilidades de escuta e transmissão. E foi experimentando que chegamos a vislumbrar de que forma trabalharíamos. As primeiras contações de história que fiz em Rio Branco do Sul no final do ano passado foram um pouco caóticas, pois os alunos pareciam desinteressados pelas histórias e eu acabei “despejando” o repertório que eu havia preparado em cima deles...o que criou um certo vácuo na comunicação e eu me senti falando sozinha outra língua. Não porque as histórias eram complicadas ou fora do alcance destes alunos, mas penso que principalmente porque eu não abri espaço para escutá-los, preocupada com a possibilidade de que não me ouvissem. Então, em um dos encontros com as outras integrantes da Cia, em que a pauta era como estava indo o projeto, conversamos sobre essa nova interação com este novo público. Chegamos a conclusão que era muito importante fazer uma preleção antes de começar a contar as histórias pra poder conhecer um pouco o universo dos alunos: quem eram? o que liam? o que sabiam? por que gostavam de ler e por que não gostavam?


Este primeiro momento já prepara o ambiente para iniciar um momento de diálogo, em que os alunos não só escutariam as histórias mas também poderiam e deveriam discutir sobre os temas que levamos. Depois, diante do texto compartilhado, tentar envolvê-los na discussão, dando exemplos de situações cotidianas em que estejam presentes estes temas sugeridos por cada história contada. Esta forma de trabalhar funcionou bastante, pode-se abrir um espaço mais amplo e um contato mais efetivo com os alunos que passaram a se envolver mais nas outras contações que realizei posteriormente.


Os contos que escolhi para trabalhar nesta primeira etapa do projeto foram Onde vivem os monstros de Maurice Sendak, Amigos pelos vento de Liliana Bodoc e A princesa e o piolho, inspirado no fragmento homônimo do livro Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos dos Irmãos Grimm.


Descobri que o conto Onde vivem os Monstros seria a melhor forma de começar porque há no texto um momento em que Max, quando chega no território dos monstros, usa um truque mágico para amansá-los, que além de dizer “quietos!”, consistia em “olhar nos olhos amarelos deles sem piscar nenhuma vez”. Essa interação nos remete a relação aluno-professor em que o monstro professor precisa primeiro acalmar os alunos monstros para começar ou continuar sua aula. Aí cada um tem seu truque, seja gritando ‘silêncio’, tocando um apito ou ameaçando chamar a direção. Neste caso, a relação com os alunos requer do professor um recurso para amansar ou acalmar seu interlocutor. Com este “desafio” de olhar nos olhos de cada aluno sem piscar, gera-se um espaço de brincadeira séria em que o aluno também desafia o professor ou no nosso caso, o agente contador de história. Olhando profundamente nos olhos destes alunos eu dou chance pra eles também mostrarem seu “poder” e quem sabe vencer o desafio entre os colegas.





Para despertar o interesse pela leitura dos livros em questão, o exercício da escuta é essencial, haja visto que o sentido da audição é o primeiro a se desenvolver no ser humano, ainda no ventre materno. Quando damos voz alta às palavras impressas no livro, elas encontram no ouvinte um amálgama de referenciais, fazendo com que este vislumbre o conteúdo textual vivo, em imagens mentais. É claro que não podemos deixar de mencionar o fato de que a qualidade da interpretação destes textos determina também a qualidade de escuta, pois as três contadoras de história dispondo de recursos teatrais e musicais deixam a contação de história mais envolvente. O que leva o aluno a querer procurar o livro que nós usamos nas apresentações do projeto, alguns alunos vieram nos procurar depois da apresentação perguntando onde acham o livro, anotando o nome e o autor. Isso pra gente é vitória. É vitória também quando um adolescente que dorme sobre a carteira começa a “levantar as orelhas” para ouvir a história e aos poucos vai ficando reto e dali a pouco está com os olhos esbugalhados te olhando.


Existe algo que nos liga, o universo simbólico das histórias ultrapassa limites de classe social, faixa etária ou raça. Procuramos algo nas narrativas, seja na literatura ou na vida. Laura Devetach nos provoca neste sentido dizendo que “quando recorremos aos textos, talvez o que procuramos seja algo de desconhecido que se apresenta para nós como uma ponte entre coisas escondidas”.


E para melhorar Michele Petit nos lembra que...


Do nascimento à velhice, estamos sempre em busca de ecos do que vivemos de forma obscura, confusa, e que às vezes se revela, se explicita de forma luminosa, e se transforma, graças a uma história, um fragmento ou uma simples frase. E nossa sede de palavras, de elaboração simbólica, é tamanha que, com frequência, imaginamos assistir a esse retorno de um conhecimento sobre nós mesmos surgindo sabe-se lá de que estranhas fontes, redirecionando o texto lido(ou ouvido) a nosso bel-prazer, encontrando nele o que o autor nunca teria imaginado que havia colocado.”


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